terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A história do Amancio


A minha mãe sempre foi um espectáculo!
Um dia saiu-se com uma boa num daqueles encontros típicos das famílias numerosas em que todos falam, opinam, contrariam e desatinam. Rezava assim: Sabem meninos que ali junto à Parreira na Avenida da Bélgica morreu um fulano de mota. O famoso Amâncio que desde logo baptizámos! Ia de motoreta V5 atrás duma Toyota Dyna de caixa aberta carregada de chapas de zinco onduladas.Então surpreendentemente levantou-se um vento dos demónios e uma placa soltou-se e cortou-lhe a cabeça... ela rolou dentro do capacete e foi quedar-se à beira do muro. A história era todos os anos acrescentada com novos pormenores aquando do "Dia Mundial das Carolas" - um domingo de Carnaval em que todos comiamos bons pratos de carolas e excelentes carnes de porco, enchidos, etc..
Assim, o azarado Amancio ultrapassou, sem cabeça, a carrinha em grande aparato e perante a incredulidade das testemunhas. Um verdadeiro desastre ou o começo do fim do mundo!
Ainda hoje se fala do dito e continuamos a acrescentar mais umas achas: ainda há-de haver um tempo em que os nossos netos falarão do Amancio que seguia numa nave unipessoal, assim não falte o milho face à evolução tecnológica e a vontade para as famosas "carolas". Não me venham com histórias que os biocombustiveis vão acabar com isto tudo...Não! A evolução não apaga as pequenas tradições e a recordação de bons momentos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O toreiro e a comida dos porcos


No final dos anos 60 os meus irmãos mais velhos resolveram ir passar o fim de ano a duas festas diferentes. Era assim! Julgo que os meus irmãos nunca partilharam muitas cumplicidades e diria mesmo havia algum afastamento quer do ponto de vista fisico, mas também ideológico. Um era amante das tertúlias citadinas face a maior propensão para o engate e com a sua forma de vestir mais cuidada (desacreditava as origens humildes com seu ar de alã), o outro era mais virado para o desatino, acompanhava "artistas" tocadores de bombos e violas. Tocava muito bem gaita de beiços o que à época era sinal de farrista. Consta que pertenceu a um grupo de "barulhentos" de curta memória para gáudio dos pais. Nessa noite de frio de rachar eles combinaram chegar a casa à mesma hora. Foram direitos à velha cozinha onde a mãe tinha os habituais panelões de cozer a comida para os porcos - a famosa "Vianda", mas o lume estava apagado! Para rapidamente se aquecerem lançaram mão a um garrafão de petróleo com que atearam o fogareiro de serradura (uma verdadeira preciosidade) e ...quando deram conta até o telhado ardia. A preocupação era apagar o fogo e não dar o alarme para os pais não acordarem e não entrar em acção o "toreiro no lombo". Como não pretendiam fazer barulho atiraram com os paneloes da sopa dos porcos e apesar de tudo ter ficado sujo e impestado de um cheiro intenso a caldo entornado, o milagre aconteceu - extinguiram o incendio...
Apanharam novas couves e nabos na quinta e voltaram a repor o importante cozido, limparam tudo e foram dormir já o sol raiava os seus primeiros gracejos de um novo ano. Foram satisfeitos com o feito e já não tinham frio face à tarefa efectuada. O famoso "toreiro" não tinha entrado em acção... É de realçar que confrontados com a historia há quem não confirme nada do que está escrito e referem que teria sido mais uma invençao de um dos intervenientes - afinal adorava divagar! Eu acredito já que são muitas coincidências, mas...
Nota: Toreiro - caule de couves altas que dava um verdadeiro chicote grosso.
Vianda: iguaria, no caso para os bácoros

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Impressões dos anos 60/70


Nos anos 60 e 70 a vida de quinta não se podia dizer que era simples. Na verdade, trabalhava-se muito e as recompensas eram diminutas.Creio mesmo, que Viseu era uma cidade muito rural e subdesenvolvida que tinha as maiores carencias.Recuando 30/40 anos e apreciar a cidade nesse tempo, deparamo-nos com um peso enorme da agricultura e tudo o que gravitava em seu redor: as feiras, as tradições, a educaçao e cultura pouco evoluidas, etc. Tempos sem saudade...apesar dos velhos do restelo nos dizerem continuamente que "naqueles tempos é que se vivia bem"! Parece impossível, mas apetece-me gritar bem alto que naqueles tempos só viviam alguns, os outros limitavam-se a ver os outros viver! Viviamos de esmolas, de reverencias aos senhores da terra, reminiscencias do feudalismo...atrasos irreparáveis que ainda hoje pagamos. Isto para não falar que os filhos dos pobres em idade adulta eram atirados para a Guerra Colonial e os filhos dos ricos eram enviados para a Suiça, Holanda, etc..Hoje são muitos os patriotas a falarem de guerra do ultramar, mas será que falam das provações porque passaram os pais que viram partir os filhos nos seus saloios 20 anos?? Não...falam de exilios dourados, faustos que as boas linhagens sempre pagaram! Há tanta hipocrisia neste rectângulo murcho e triste...

Vejamos:

- A escola pimária era um perfeito absurdo.Os alunos eram convidados a dissertar sobre o HINO e Bandeira em longas redacções. Quem podia alinhava na Mocidade Portuguesa - estrutra fascizante que dizia muito a poucos - os do costume. Levávamos reguadas e bofetadas sempre que não cumpriamos com professores apegados a sistemas arcaicos. O frio e a fome eram tradições e Salazar era um verdadeiro Deus, omnipresente em todas as estruturas sociais.
A PIDE estava ao virar da esquina, o meu moleiro tinha uma fotografia do Salazar e do Tomás na parede da sua moagem. Na Igreja quem era rico (poucos, mas os mesmos de quase sempre) tinham sempre posição de destaque. Na visita Pascal o Padre ia almoçar sempre à casa da família mais abastada da freguesia em Santiago. Não deveria ser à cabana mais pobre? Não...a Igreja sempre levou a sério o velho ditado: "Muito bem prega S.Tomás ..."E que dizer que na 1ª comunhão o Padre da freguesia não queria consagrar o meu irmão só porque não tinha o laço aposto no braço como mandava a tradição? Mais tarde viria a ser confrontado com a mesma visão erronea da fé católica. Quando precisava da autorização do padre da freguesia de S.José para me casar em Sta Maria...olhou-me de desdém e disse que não era habitual estar na missa de domingo!! Roguei que estava a estudar em Coimbra e nunca mais esqueci a sua insensibilidade. Como se precisássemos de um padre para nos casarmos e praticarmos todo o bem do Mundo ...às vezes a nossa Igreja que deveria dar o exemplo comporta-se como uma exposiçao de vaidades, uma verdadeira agremiação de poderosos,pessoas com telhados de vidro. Nunca me cativaram e não pertenço a qq Maçonaria.
Já perceberam porque são estas situações que nos fazem descrer da Igreja instituição...É tão ridiculo:
- Sr Capitão venha falar ao altar, por favor! Agradeço que quem não seja atleta de Cristo se cale...Aconselho que a mães mandem calar os seus filhos pequenos. Neste lugar Cristo ouve-nos!
Na verdade, só tenho saudades de quando o vozeirão do meu pai cantava as Hossanas na missa domingueira. Fazia-o com alegria, diria mesmo que seria dos poucos bons momentos que o meu pai gostaria e ninguém o perturbava. Fazia-se notar na Igreja da N.Senhora da Conceição...às vezes lembro-me que herdei dele esses dotes no Canto Gregoriano...fascinam-me os acordes nos templos frios e com acústica.Noutra vida talvez tenha sido um Andrea Bocceli.

Diversões:


Tempos dos Beatles,Manfred Man, Led Zepelin, Procul Harum,1111, Jose Cid, Simone, Tonicha, Calvario, Amalia ...Dançava-se em bailes, matinés de arrastar os pés e "constituir familia".As festas das aldeias eram a grande esperança do engate dos moços da época. Começava em Gumirães em Maio e terminava em Ranhados pelo tempo da Feira de S.Mateus, em Setembro. Eram tempos delirantes para a minha irmã espanpanante loira numa época sorumbática e de conformidades. Corria por todas as festanças e bailes da cidade e arredores, eu acompanhava qual cão de fila pronto a guardar a dama dos incautos.Eu não gostava muito de rebuçados! A minha mãe, corria as festas de toreiro e mangueira debaixo do xaile.A sua filha não cumpria as regras e os horários de entradae a minha mãe precavendo-se dos "pinga-amores" distribuia a sua ira em gestos gastos de tanta protecção. Sei que eram os tempos de defesa da honra que ditavam aquelas condutas.


Será que distribuir mangueiradas a torto e a direito em Orgens, S.Salvador ou Abraveses não era uma forma de exorcizar fantasmas ou motivações de ciúmes? Afinal a mãe divertiu-se quando?Não era fácil a vida naqueles anos de pobreza...






sábado, 12 de janeiro de 2008

A historia do Mija Boi!


Na verdade, quando a minha mãe resolvia mandar lavrar a terra na Quinta do Figueiral, falava com o meu avô, marcava-se o dia e era uma festa! Dia de muito trabalho, de sol a sol, mas com uma carga emocional forte. Vinha o lavrador (o Ti Manel) com os seus bois e com a ajuda do avô a terra era virada e fresada convenientemente para as sementeiras de cada época. Comia-se muito ( o mata-bixo, as 10H, o almoço, a merenda e até a ceia/jantar). As mesas pobres à época, transfiguravam-se em lautas jornadas de bacalhau frito, coelho estufado, frangos de cabidela, etc.)Os vinhos da quinta eram omnipresentes e ajudavam a aclarar as vozes entorpecidas pelo pó da terra. Que tempos...
Só quando o Ti Manel não podia por já ter outros trabalhos ou eventualmente por doença, a minha mãe (sempre a força da minha mãe, já que o meu pai trabalhava no famoso Caga Milhões - armazém de ferragens)é que chamava outro lavrador, o substituto MijaBoi que era acompanhado sempre pela sua mulher num dueto que mais parecia uma verdadeira empresa agricola! Vinham e o pobre homem, cansado e muito tocado a copos (a sua mulher tb. aqui não se fazia rogada), quando os bois começavam a andar a ritmo demasiado elevado para si, fomentava a paragem dos ditos, sempre com a mensagem: DEIXEM MIJAR O BOI! Era como que a sua costela alentejana a falar mais alto em terras da Beira Alta...obviamente parecia que tinha três velocidades:Devagar e devagarinho/parado. Eram tempos de combóios de via estreita.Ninguém sabia o que era o stress.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

As pipas correm ao sabor da maré


Lá está o barco rabelo pertença das Caves Ramos Pinto e o Ti Manel de Bigas corre a tocar as pipas vazias de Porto. Cheiram a whisky já que vieram das highlands da Escócia...a azáfama é grande. O vinho do Porto aguarda nos toneis enormes, quantos homens se metem dentro deles. Que cheiro a néctar dos Deuses...Para que conste o meu avô iniciou nesta grande casa nos principios do sec XX a sua vida de trabalho árduo, fugindo dos rigores da Beira Alta para trabalhar nas Caves de Gaia.Aqui conheceu a minha avó que era natural de Canelas-Gaia, descendente de Nórdicos - os seus olhos de sereno azul não mentiam!

sábado, 5 de janeiro de 2008

"Deixa o boi mijar e farta-o de arar"-Provérbio português

Retiro sensaçoes estranhas desta correria que me arrasta mais uma vez rumo à feira semanal. O meu avô corre sereno à frente dos animais. Vai alegre e os anos não fazem mossa na sua dura carapaça de homem do campo, habituado à rudeza dos tempos e aos homens agrestes. No recinto da feira é venerado como se fosse o mais abastado proprietário e ele só tinha as artes da sua experiencia para mostrar. Intermediava negócios. Quanto custa a vaca? 50 notas...dou 40! Vamos lá amigos, dividimos isto a meio. São 45...e estava o negócio fechado. A face nunca estava comprometida onde estivesse o Ti Manelzinho da Aguieira. Dizia umas chalaças,bebia uns copos bem bebidos e comia algumas iguarias que à época não estavam ao alcance de qualquer um. Adorava acompanhá-lo na partilha de um frango assado na brasa e colocado em mesas besuntadas, comido em pé acompanhado de vinho tinto feito de castas tradicionais da região. As bananas e laranjas tinhamm lugar cativo na sua dieta de feirante e isso ao tempo era um privilégio.

Vidas de quinta no século XX


Estranhamente sopra uma brisa anormal neste tórrido Agosto.
Os pássaros sentem-se perturbados com a evoluçao do tempo. Batem as asas com tal veemência que até parece terem um motor acoplado. As andorinhas voam alto e pressentem chegada de trovoada.
Ao longe mais um incêndio arrasa um dos montes que circundam a cidade que, e atiçado pelo vento, cavalga alheio a todas as preces dos velhos na Igreja da Nossa Senhora da Conceiçao. É o fim do mundo, divaga com ar carrancudo uma septuagenaria. À medida que nos aproximamos do final do século, não tenham dúvidas que Deus vem castigar-nos! Bem, premonições que seguramente ninguém leva muito a sério ou não fora este país de católicos não praticantes.
Lá bem no fundo da quinta, dois jovens procuram acudir às pragas das videiras despejando sulfato de cobre com uma máquina tradicional de cobre, uma relíquia que se mostra eficaz. Estavam longe de perceber o perigo que os faria mudar de rumo. A chuva começou a cair, violenta. Um cheiro a terra molhada tomou conta do ambiente. E, como diria a minha mãe, o "astro" estava de má feição. Os rapazes entenderam que o castanheiro centenário seria o seu abrigo e ainda bem que mudaram de ideias e desataram a correr com a máquina às costas...Um raio rasgou os céus e com enorme estrondo rachou uma boa parte da árvore! Nunca mais seria o castanheiro marcante daquela quinta e anos mais tarde depois de espremidas as últimas castanhas num outono cinzento, o dono resolveu cortá-lo e vendê-lo para pranchas de madeira. Um fim triste de uma árvore pomposa e que a todos cativava. As rolas não tinham mais o seu ramo predilecto para colocar os seus miseráveis ninhos de simples paus laboriosamente acamados.

Deixem mijar o boi

É minha humilde intençao contar-vos algumas histórias interessantes e que são sempre de relevar num tempo que é de alguma tristeza e descrença face ao que apelidam de provincianismo português.