quarta-feira, 2 de julho de 2008

O meu irmão João e a Guerra na Guiné

A minha guerra em África: Guiné 1973-1974

O relógio de parede da estação de Santa Apolónia, em Lisboa, marca dez horas e trinta minutos e a instalação sonora anuncia, repetidamente, a partida do comboio com destino à Beira Alta. É dia 14 de Setembro de 1974.
Sinto-mo bem entre camaradas de armas que, tal como eu, estão prontos para seguir os seus destinos. Gente boa. Ao lado, no chão, a mala preta, de fabrico inglês, acomoda os parcos haveres, pois os bens mais preciosos como um relógio marca breitling, documentos pessoais e todo o dinheiro (escudos e pesos) haviam sido subtraídos.
Ouve-se uma voz que pronuncia o meu nome. Vou ao seu encontro e reparo que é a do militar que ameaçou matar-me na primeira oportunidade, por o ter impedido de consumar um levantamento de rancho. Mão estendida e palavras de desculpa pelos factos passados. Olhei-o e exclamei - não sou furriel … não te desculpo! Fez-se silêncio de imediato quebrado por palavras de despedida. Votos de boa viagem e de felicidades foram trocados enquanto pegava a mala. Por último levantei o braço e desejei bom dia a todos e decidido entrei no comboio.
Encontrei um lugar junto a uma janela e instalei-me, depois de arrumar a bagagem, deixando-me conduzir numa outra viagem iniciada aos dezoito anos de idade, que começou com a aprovação para todo o serviço militar, a curiosidade pela carreira de piloto ou por outra relacionada com a aviação determinou oferecer-me voluntário para a força aérea, sendo chamado para prestar provas quando já tinha sido incorporado no serviço militar obrigatório.
Depois da recruta seguiu-se a especialidade e o serviço de instrução militar na cidade de Viseu, no regimento de infantaria nº14, até à mobilização, no regime de rendição individual, para funções de formação militar na cidade de Bolama, na ex-colónia da Guiné.
“Vista parcial de Bissau e ilhéu do rei”
Tinha chegado a minha vez. A minha mobilização para a Guiné deixou-me de “rastos” e desertar passou a ser a única prioridade. Determinado a sair do país procurei o apoio do meu amigo “Aireca” que estava refugiado na Holanda, e assim fugir da guerra colonial,
Contudo, o receio de ser preso pela pide, o amor à família e a educação, rude e severa, ancorada no tríptico Deus, Pátria, Família, conforme ao regime fascista que amordaçou o país, não me permitiram concretizar o objectivo
É pois naturalmente que em Novembro de 1973 aterro no aeroporto de Bissalanca, na Guiné, depois de breve escala em Cabo Verde. O cheiro a terra húmida, o sol e o calor imensos fazem daquele lugar um inferno, seja lá o que isso é …

O desconforto causado pelo ambiente inóspito torna-se menos significativo se comparado com o primeiro serviço como responsável pela guarda de honra em funeral militar. Não um mas três são os corpos que vão a enterrar, digo depositados no cemitério de Bissau, onde se encontravam outros, muitos, talvez para serem repatriados. Fica-se sem palavras …
O tempo foi passando. Um dia o oficial de dia lembra-me: - o nosso furriel sabe que decisões militares cumprem-se e não se discutem.
Desta maneira simples e rude confirmou o local que constava na guia de marcha - Gadamáel-Porto. Afastei-me silencioso, contrariado pela decisão que me impedia de ir para Bolama, para onde tinha sido mobilizado, dar formação.

Estás “fedido”, dizia o meu amigo açoreano.

Embarco para sul rumo a Gadamáel-Porto numa LD - lancha de desembarque, mais parece uma ponte de ferro que navega. Chego ao entardecer depois de breve escala em Bolama.
O cenário que a vista alcança é desolador. A destruição e pobreza trespassam o coração. Toda a paisagem é um imenso drama, queimadas de floresta, “tabancas” destruídas, grandes buracos em telhados e no solo, estilhaços de munições espalhados por todo o lado. Um horror.


Não foi necessário esperar para perceber as causas de tanta destruição. A minha chegada foi acompanhada de forte ataque de artilharia, baptismo de fogo difícil de esquecer e de recordar. Ali estava eu, encolhido num abrigo, cheio de medo … impotente tal a violência dos impactos. Os meus camaradas riam e nervosos acrescentam: - ó piriquito olha que isto não é nada, quando for a sério vais ver como doem … silêncio.

O quotidiano é preenchido com serviços diversos, idas ao mato em missões de grande perigo e sofrimento.

O som dos rebentamentos, os mísseis terra/ar … objectos projectados no espaço, a masseira, panelas, coberturas.

Há momentos em que tudo parece ter vida própria ao contrário das pessoas que parece que a perderam.

O “vaga-vaga” (que nos matou à fome), com dietas extraordinárias da nossa gastronomia, como sejam as ementas de guisados de esparguete e salsichas ou de feijão com gorgulho (muito) e chouriça, que durante mais de trinta dias fizeram as delícias dos nossos paladares, sendo servidas alternadamente ao almoço e ao jantar, sem contar o pronto a comer, as rações de combate. O mistério dos gatos desaparecidos, de todos os gatos, acabou no momento de um petisco que depois de degustado mereceu os maiores encómios, um verdadeiro hino à culinária. As pescas de peixe à granada e de galinhas e patos, à linha, outras vezes, ainda, mais sofisticada, através de um fármaco “valium” e os bichos adormecidos eram abandonados pelos seus donos, as ostras sublimes, a festa de aniversário … um luxo.
O homem e a natureza. Paisagem natural onde diferentes factores interagem e evoluem em conjunto.
A bajuda da foto, (jovem rapariga) exótica e selvagem, que amanhã será mulher, trabalhará para casa cuidando do marido e dos filhos e demais pessoas que a frequentam. Cultivará os campos, a sementeira, a sacha, as colheitas cujos produtos carregará à cabeça. Andará pelo mato à procura de lenha que junta em molhos e os levará para casa. Trabalhará de sol a sol sempre com um bebé amarrado às costas.
Esta é a realidade da mulher africana e a minha homenagem.

Régulos e curandeiros, os homens grandes das povoações, os inúmeros dialectos, as doenças do paludismo e malária, “manga” delas, as sanguessugas, o vernáculo na língua de Camões, o olhar das pessoas … de indiferença e desdém.
Finalmente a partida e o último gesto de revolta dos militares que, em formatura absolutamente irrepreensível, honraram a sua condição e impediram que o avião 707 da TAP levantasse voo sem nos levar a bordo.

Sabe tão bem a liberdade.
O avião aterra no aeroporto de Lisboa. Sigo para o quartel do RALIS, para efectuar exames médicos que, sem justificação, não se realizam.

Contrariado, dirijo-me a um espaço onde procedo à troca do vestuário. A farda, completa, fica pendurada num cabide de parede. Agora em traje civil, mala de viagem na mão, saio e na rua apanho um táxi e determino ao motorista o caminho para a estação.
J. Pais Antunes, Independente do Gadamáel-Porto e Ex-Furriel Miliciano. Lema de vida: Só o impossível vale a pena. 11 de Abril de 2008.

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